24/06/09

De manhã o sol não entrava pela janela como era costume. As nuvens rasteiras andavam por ali a espreitar, pelas redes enferrujadas, os galinheiros e os ovos frescos. Por ali, ao contrário das noites, os dias não costumavam ser tão bonitos.
O colchão ainda estava quente das esfregadelas havidas na noite anterior. Húmido, mas não totalmente húmido que fosse resultado de ter levado alguém a entrar na glória dos orgasmos.
Teriam sido interrompidas as finais erupções leitosas quer do cliente quer da filha da caseira?
Em forma de estrela, por trás do pipo grande, uma pequena porta secreta prendava pela sua passagem todos os clientes como o tesão que faz qualquer osso ranger de ansiedade. Para um buraco transformado em quarto, de braço dado, Marta arrastava consigo, pela porta em estrela feita, um casto pecador. Era a entrada no céu. Um céu onde o prazer e os temperos da carne eram acima de tudo os brindes mais requintadamente oferecidos. Sem necessidade de qualquer chave a filha da caseira tornava-se amor desde a entrada até se despedir do casual amante com um beijo. Um céu de madeira, embebido em sabedoria e testosterona, onde o deus e senhor era uma mulher que abria bem as pernas. Não se julgava nem mais nem menos puta que as outras putas todas, no entanto, não se condenava em absoluto pelos afazeres a que se propunha, fazia-se mais luminosa por cada ida àquele céu. Dada a internacionalização do poder da sua abertura de ancas e do interesse em ser mais feminina que a Marilyn Monroe aprendeu a falar inglês e a calcular o diferencial entre as taxas de juros activas e passivas dos grandes bancos europeus. Marta, por visitar o céu várias vezes ao dia, era a mais bela e amada mulher feita na terra.

Esfregavam-se há horas.

Entre as virilhas, nos cabelos, entre os dedos e nas gangas das pernas rebentavam de loucura.

Ambos em cada abraço apertado, à luz de um candeeiro manhoso, cuspiam um fogo mais luminoso que o fogo preso dos arraiais.

Sem que por qualquer momento lhe tirasse a mão das costas, que o empurrava para cima, tapou com o cabelo os olhos para que ele não a visse a prestar serviço comunitário.

Ludibriante, igual às mulheres dos calendários, ela fazia fintas de paixão. Fintava a presa como as rateiras viúvas negras.

Dançava ali achatada sob o peso horizontal do homem, trincava-lhe os ombros e o queixo, beijava-lhe a ponta do nariz e os lábios, dizia-lhe palavras obscenas como nos diários de Bianca enquanto o controlava nas estocadas e no ritmo. Por baixo de si o colchão sujo e encovado de muitos meses. A tirana sorria de olhos fechados àquele cobertor peludo de 83 quilos enquanto amassava violentamente o colchão. Com os joelhos, uma perna e mais outra, fazia as calças dele deslizar do corpo.

A respiração acelerava, os moncos do nariz dele pendiam gordos a prometer uma queda a qualquer momento sobre a maquilhagem Cibelle dela. Já e prazo de se babar, o cavalo abriu os olhos, afastou-lhe o cabelo do rosto com uma arfada, viu-lhe os olhos e arrepiou-se em contracções. Colou-se com toda a força no corpo dela, esperneou em chicote e disse-lhe que a amava.


Uns noventa anos no lombo e os dentes do marido, feitos em brincos, nas orelhas.
Suzete, era a mulher que viu Salazar a fugir entre os arcos da biblioteca principal quando rebenta o golpe de estado.
- Já engoli muito lixo menino - disse-me ela esfregando a barriga que lhe içava o avental.
Sou do tempo em que os olhos eram das lágrimas enquanto comíamos do mesmo prato.  Sabe lá o menino o que isso é. Já ouviu falar de amor e incerteza?

Trazia no pescoço um terço, preso nele a imagem do sagrado coração de Jesus e um S. António. Nos dedos, vinte e cinco anéis, distribuídos ainda às escuras por alturas da tímida madrugada.
Suzete é uma mulher saciada de histórias e adereços.  
O marido tinha sido um dos guardas de Salazar que ficara sem os dentes durante a fuga de abril . 
DIz-se que embatera numa das colunas duras e rijas  que ainda hoje, ali, assistem a tudo. 
Pelas suas marcas, aquelas barras, contam ainda hoje histórias de fugitivos, desaparecidos e desdentados.
Os dentes foram encontrados e hoje eram os brincos de Suzete.
- Ó menino; soubesse eu do meu marido para lhos tornar a pôr. 

O marido de Suzete tinha desaparecido pelo meio da multidão disfarçando com os seu casaco as feições de Salazar.
- Sabe que ouço por aí dizer que o presidente ainda é vivo e quem enterraram foi um dos seus colegas de poker? E olhe que o meu marido não sabia jogar poker. Abençoada burrice dele nos naipes para me fazer mulher com esperança.
Já me cambaleio, como vê menino, mas ainda o espero.
Cambaleio não por estes anos me terem secado as lágrimas, mas por ser uma mulher ausente do amor do qual só o sei desdentado.
Pela insistência dos toque do telefone, sabia com certeza de quem vinha a chamada. – Está? preciso falar contigo, estás ai? (gritou) – sim (respondi-lhe eu ao grito), podes falar. Sabia pela sonoridade da sua respiração que a conversa seria longa e trituradora do meu tempo. – Então é assim… Arrepiei-me, como eu detesto quando alguém inicia uma frase que seja com a expressão, “então é assim”. Fugi. Desliguei-me daquele telefone. Desliguei-me de mais uma história habitualmente bizarra com necessidade de descodificação por parte de psicanalístas. Entre setenta e nove discos escolhi um de capa verde e pus a tocar, coloquei os auscultadores nos ouvidos prensando o máximo as orelhas, ia ouvindo uma voz arreliada bem ao longe, bem no lado de lá da linha telefónica, nem uma palavra entendia, a música quase me fazia cantarolar. Controlei-me. Abri umas revistas, li e reli todas as letras gordas e semi-gordas enquanto tirava ideias para umas fotografias, viajei aos locais onde as fotografias seriam feitas, escolhi a hora do trabalho, calculei os valores aproximados de intensidade luminosa, escolhi as personagens e apresentei-lhes por e-mail o projecto, responderam, aceitaram, escrevi a pedir uns apoios… -Estás ai? (estremeceu-me) -Sim, (respondi-lhe eu ao berro em Dó de uma última oitava). Continua, estou a ouvir-te Beatriz. Continua.. Tirei os auscultadores, virei-me para um parede branca do escritório, dei-me pronto a um pouco de atenção, pelo menos a uma das partes do telefonema, não me fosse perguntar alguma coisa, alguma opinião. Seria inédito, no entanto apromei-me, prometi-me ficar atento, quem sabe, o assunto, desta vez fosse algo realmente importante. Pondero sempre a possibilidade de um telefonema importante feito por si, por isso a atendo. Basta um pequeno deslize de inocência a Beatriz Maria para que todos os seus momentos sejam apneias obstrutivas às suas conhecidas ideias de mudar o mundo. Esta é a realidade que a faz fazer-me constantemente chamadas. Quando Beatriz Maria decide tornar um momento seu de desespero num momento, para si, razoavelmente feliz e ainda assim as coisas se lhe apresentam pela mais rasa medida, Beatriz Maria liga-me, liga-me todos os dias, para me informar que se lhe rasgou a alma como se tivesse sido violada por um habitante do Congo. Sempre a considerei uma senhora, mas nunca uma senhora que se rasgasse ao ser violada. -… por agora, – diz-me já a cuspir-se – prefiro não acarinhar, nem apostar em nada que me possa sair em desastre. Decidi ser velhinha por uns tempos e tomarei só como frente de ataque as minhas felizes certezas. Uma mulher madura que abandona qualquer sentido de esperança, julguei eu. -Serei uma velha idosa aos trinta e dois anos e que decidiu trocar o risco pelo medo que o diferente me pode propor, consegues entender? (fingi que sim) – sim claro! - Podes escrever aquilo que te digo, tornar-me-ei a partir de hoje traidora das minhas certezas. Desisto de estratégias para as mudanças, serei a amante do cómodo e da passividade …(desligou a chamada). 
Beatriz Maria, adultera e corcunda Beatriz Maria. 
Assim te escrevo como pediste.

10/06/09

Desbravaram o terreno, escavaram o monte.

No lugar dos pinheiros os camiões e o pó eram sempre presentes pelos dias e pelas noites.

Cada dia, naquele monte a casa crescia desvairada. Decomposta naquele lugar uma casa grande de paredes altas, a casa dos pinheiros desaparecidos.

Um valado florido, uma oliveira, uma escadaria brilhante, uma casa.

Os camiões iam embora, o pó assentava e os peregrinos dos sofás, das cadeiras e camas, das loiças e talheres, das roupas e das grandes pinturas entravam na casa feita, faziam-na maior, destemida. Nasciam portões, isolava-se. A relva em rolo desenrolava-se, a oliveira deu meia dúzia de azeitonas. Uma casa grande. Na casa dos pinheiros desaparecidos vivia gente que não imaginava que ano depois de anos corridos a tinta descascava, a oliveira iria secar e novos peregrinos apareceriam para recolher sofás gastos, velhas roupas encardidas, loiça em cacos, fogões e frigoríficos enferrujados, enquanto que, pelas telhas o soalho ia sendo regado. A cozinha seria negra, o corredor largo tornar-se-ia estreito e manchado por décadas de apalpadelas de gordura trazidas pelas mãos dos velhos guiar-nos-á à sala, a uma sala sem tecto, de soalho podre e fértil pela decomposição dos habitantes lá mortos. Ali na sala nascerá um pequeno pinheiro e deste outros grandes pinheiros mais largos, de novo um monte, um monte.

ao lado