20/12/10




O vinho, o bafo, o embalo do copo quase vazio.
No prato a tira de carne ensopada em gritos de animal morto
e nos dentes dos talheres um bocejo pouco esfomeado.
À mesa, hoje sobre um só cotovelo, já não te espero.

16/11/10


Tenho-me sempre a pensar no espaço que existe entre a cama e a janela. Nesse sempre, aparece-me à ideia o anjo mais estranho que alguma vez conheci. Um anjo enviesado de olhar agudo que parece nascido de um ovo. Um anjo que desagua nas praias onde nadei, nas que não conheci e que às escondidas sacode o mal das penas. Um anjo que besunta sempre o bico como se preparasse a um estudado ataque rapina. 
Não suporto o mistério das suas aparições entre a minha cama e a janela. 
Ainda que me dissesse que vou ser pai, preferia-o branco e em forma de pomba.

26/08/10

Farta e de barriga vazia,

há três dias sucumbe, olhos gastos

pela luz e pelo nada que se

lhes entra, as noites foram

parecendo só suas, duras,

longas, noites encardidas. Antes

que se encartilhe deixa para

trás algumas das memórias, as

menos apetecíveis, talvez.

De novo voltará ao seu

si, ao seu pedaço que ainda a

reconhece, enquanto se untará

nas alegrias que lhe restam

destes dias que a encolheram.


Antes de descerem à terra das criaturas feias,

as criaturas bonitas lambem-se até abrirem fendas largas nos braços, nas pernas e nos pés.

Quando largam os sítios altos, os telhados de todas as montanhas,

vestem-se de feridas vaidosas enquanto se transformam em criaturas líquidas e vermelhas.

Dos telhados das montanhas nunca desceram criaturas bonitas e arranjadas.

Pelo caminho, acabam por morrer afogadas no seu sangue e no seu brio.

Domingo há missa. Hoje, sexta-feira, é dia de Emília varrer os pátios da capela, sacudir os miúdos que, nas reentrâncias das pedras das paredes grandes, se encavalitam para fumar às escondidas. Diz-se que Emília acredita que, enquanto o pátio da capela for por ela limpo, terá o céu como destino, assim como outros inflamados regalos oferecidos na casa do padre. Depois de muitas nuvens de pó engolidas, pátios todos varridos e miúdos afastados, Emília enfia-se numa das reentrâncias para fumar quantas beatas possa e quantas tenham deixado acesas.Todos sabiam que a impostora do padre, a varredora dos pátios, fumava as pontas de cigarros por ali deixadas. As maiores, as grandes e interrompidas, levava-as de presente para o padre. Revoltados, os miúdos chamam-lhe: "Emília a chupista de beatas e de padres". Amanhã é sábado, é dia de confesso. Receosa que os lugares no céu fiquem lotados, diz-se, Emilia furará por entre outras mulheres e será a primeira da fila ao confessionário. De joelhos, rezará à sua maneira e à do padre. Diz-se que os sons das palavras, dentro do confessionário, são sôfregos, quase mortos, como se diz que é sempre ilibada de qualquer penitência. Livre de pecados, domingo, pela frescura do toque do sino, de roupa asseada, terço em punho, deslizará bem cedo corredor da capela acima, até à altura da comunhão. Em público, abrirá a boca e mostrará a língua ao padre até que ele rodopie um dos cantos dos lábios como sinal de permissão a uma noite de acasalamento. Deposita-se-lhe a comunhão. Emília é permitida ao céu. Diz-se que, até hoje, Emília já foi abençoada por muitas vassouras, muitas beatas, muitas gerações de miúdos e muitos padres que outrora ali foram miúdos viciados.


19/07/10

Os espaços

depois de conhecidos, depois da ínfima experimentação das suas múltiplas potências,

serão para sempre Grandes Lugares.

21/06/10



Desbravaram o terreno, escavaram o monte.
No lugar dos pinheiros, os camiões e o pó eram sempre presentes pelas noites e dias já tardios.
A cada hora, naquele monte, a casa crescia arregalada até se espigar sonora pelas fachadas e altas paredes. 
Um valado florido, uma oliveira, uma escadaria polida. Uma casa.
Os camiões iam embora, o pó assentava e os peregrinos dos sofás, das cadeiras e das camas, das loiças e talheres, das roupas e das grandes pinturas entravam na casa feita e faziam-na maior, destemia-se. 
Nasciam portões, isolava-se. 
A relva aparada, cobrira as flores despenteadas do acaso. 
A irreverente oliveira deu meia dúzia de azeitonas. 
Na casa dos pinheiros desaparecidos vivia gente. Gente sem suposta ideia que em anos corridos, a tinta descascaria, a oliveira declinaria em curva à morte e novos peregrinos apareceriam para recolher sofás gastos, velhas roupas desfiadas e encardidas, loiça em cacos, fogões e frigoríficos enferrujados, enquanto que, pelas telhas, o soalho ia sendo regado. 
A cozinha seria negra, fumada. 
O corredor largo tornar-se-ia estreito e de paredes manchadas por décadas de apalpadelas, por incontáveis dias de gordura trazidas nas mãos dos velhos. 
Um corredor, um afunilado caminho que nos guiaria até à sala, e ali, uma sala. Uma arena, sem tecto, de soalho podre, fértil pela decomposição dos habitantes lá defuntos.  
Naquela casa vivera gente sem ideia suposta que em anos corridos, no lugar da sala, nasceria um pequeno pinheiro e, deste, outros grandes pinheiros mais largos que em verde orgasmo se expandiriam, por todas as divisões, até ao poço.  

15/06/10

Não me importei que cá tivesses deixado a roupa

Não me importo que me tivesse ficado o teu perfume.

Para que dê importância àquilo que não me importa,

fintarei num nó apertado o teu lenço ao pescoço e

enquanto a língua se solta e dela se esvaia o meu sangue,

dançarei nesta noite de misérias bem encostado a ti.

04/06/10


Pela noite as estrelas vão cobrir-se de janeiras nuvens e,
entre os penedos, na folia da sede,
as conchas vazias abrir-se-ão apressadas à chuva.
E porque te espero…hoje ainda,
como as conchas,  
entre os penedos mortos da praia,
lavarei as mãos ocas de nada, 
ocas de qualquer coisa tua.

27/05/10

Com saudades dos beijos agudos

dos cotovelos e das frescas nádegas nuas,

a cadeira arrepiava-se fria.

A rainha viajou,

a rainha foi-se embora.

Na cabeceira da cadeira os meus olhos.

Nos seus pés, de ouro velho, a minha bába.

Aqui para nós,

assim como só os ramos perdidos nos rios

viajam sempre mortos.

A rainha perdeu-se por outro reino, por certo.


Sem rainha as entesoadas revoluções já se foram.

Já não se repetem as batalhas de cuspo de ontem,

nem o batido de suores nas bandeiras patrióticas onde nos enrolamos,

não me falará mais das viagens que me fez,

nem do nome dos donos das nódoas das almofadas do coche,

que, por sinal, fincava sempre arreio no monte onde lhe comi os pêssegos.


A rainha arrastou-se pelas suas novas ruas,

foi-se-me embora despida do coche, da bandeira, de mim.

Hoje, tal como todos os reis de voláteis impérios, perdi a coroa.



08/03/10

Não gatinhei nem andei na pré-escola.

Quem cuidava de mim, enquanto os meus pais iam trabalhar, era uma ama. Desde os nove meses que fui entregue a outra mãe e por estranho que pareça não me lembro de ter sentido estranheza em ter duas mães.

Até muito tarde chamei mãe à dona Gloria, mesmo até quando já não era minha mãe.

Porque a dona Gloria tinha quatro filhos, um rapaz e três raparigas e porque os filhos dela, lhe chamavam mãe, eu também, em embalo, lhe decidi chamar.

Desde manhã até à noite esperava pela minha mãe verdadeira e pelo doce, embrulhado à pressa na hora de expediente, que sempre trazia. A minha mãe sempre trabalhou muito, até mesmo nas divagações que fazia quando tinha tudo feito.

Aos cinco anos fui para a escola.

Era o meu primeiro encontro com uma manada de rapazes e raparigas da mesma idade, sentados em cadeiras, em pasto sobre livros e cadernos que se estendiam sobre as mesas numa sala muito diferente da minha.

Quando eu chorava de saudades da minha mãe, ou dos doces ou dos beijos, a mãe Glória, dizia-me: quando fores para escola e vires a entrar na sala uma senhora com uma bata branca, esses choros vão acabar. Ela vai pôr fim a isto. Lá, não há lugar para estes choros de menino.

Aos cinco anos, dona Glória apontou-me uma grande verdade. As professoras, que vestiam batas brancas, assutavam. Sempre julgou que a obrigação para uma professora vestir uma bata branca era de impor respeito e estatuto igual ao de uma rainha de colmeia insubordinada.

No meu primeiro dia de aulas, bem cedo, o meu irmão bateu a porta da nossa casa e, no único degrau do lado de fora, baixou-se e limpou-me um dos sapatos. Ajeitou-me a mala nas costas e agarrou-me a mão. Não me levava à dona Glória, ia-mos em passo acelerado em caminhos diferentes do habitual. Sem troca de palavras, pelas ruelas, a caminho do primeiro dia de escola, só ouvia a respiração e o bater do coração que martelava mais forte do que nos outros dias todos. Recordo-me da minha primeira mala, dos meus livros novos, dos cadernos sem letras e sem vincas nas esquinas e do cheiro que vinha do interior do meu porta-lápis. Desse dia o meu irmão só se lembra dos meus sapatos.

No primeiro dia de escola, a verdade de dona Glória revelou-se. Entrou na sala uma senhora muito alta de cabelo ondulado a raspar numa bata branca. Uma bata branca. Com pressa, como quem tem muita coisa para fazer, saí do lugar que me foi imposto por uma senhora gorda e orientadora. Chamava-se Funcionária, lembro-me dela o ter dito.

Temia aquela sala, aquelas cadeiras e aquela parede negra, os tacos levantados e dos peitorais das janelas enfeitadas com flores mortas.

Chorei. Gritei pelo meu irmão e quem se aproximou de mim foi a senhora de bata branca. Muito antes de ter forças para fugir fui agarrado. Haviam muitos meninos e meninas a olharem para mim, não os conhecia, juro que não os conhecia e, mesmo assim, insistiam em olhar para mim.

Os braços da professora abraçaram-me. Numa das pausas de pedido de silêncio, disse-me ao ouvido, quase em beijo que ali iria aprender a escrever e a ler as minhas próprias histórias. Lembro-me que, no meu primeiro dia de escola, não queria ser abraçado pela mulher que se vestia de branco para manter respeito, não queria nenhuma história minha nem a de ninguém. Queria a minha mãe ou a outra que eu sempre soube que não era minha.

Fui sentado no chão, no fundo da sala, dias e dias com brinquedos e construções das difíceis, enquanto o meu irmão assistia fora da sala, num lugar onde eu o visse. Não tinha doces nem beijos, mas oferecia-me, entre as flores mortas da janela, um sorriso. Sossegava-me como estar sentado no chão.

Os outros meninos aprendiam a ler e a escrever num compasso picado, marcado pela cana na mesa da abelha branca.

Eu, ocupava-me com as montagens e desmontagens e, quando tinha tempo para aquele côro de sé velha, desenhava os números e as letras com as construções sem abrir o bico, não fosse alguém badalar à entidade suprema que eu deveria ir para uma secretária por saber ler e escrever.

Anos depois escrevi esta história pela fórmula aprendida na minha primeira escola. Prometo que em breve a leve num caderno novo, sem os cantos dobrados e a leia em voz alta à senhora da sala, já que à dona Gloria é tarde para contar.

Quanto à minha mãe, a mãe dos beijos e dos doces, essa, sempre soube esta história sem nunca a ter lido.

07/01/10

Porque nos banhos dos corpos nús não se deve olhar abusivamente para os lados, não o fiz, dei-me só ao sentido dos mimos da espuma que me escorria pelo corpo e da água morna que me amolecia pés.

Cometi a inocente loucura de deixar cair uma moeda bem perto de si e da toalha ensopada com a última água que passou por ela.

Baixou-se.

Em silêncio ao passar-me a moeda que tivera rolado até aos seus dedos, vimo-nos.

Tirou a toalha, unto-se com creme "peles mistas", vestiu-se e saiu apressada. Fiz o mesmo, mas com uma calma que não era minha. Como não uso cremes não gastei o mesmo tempo que aquela mulher, fazia-me em espera. Sem pressas vesti-me, não me podia adiantar.

Saiu. Sai, segui-a a uma distância segura. Queria saber mais sobre aquela razão aturdida que eu sentia e sobre si, onde aprendeu a colocar a voz, o que significaria o anel no dedo e se o corrupio que trazia no cabelo era deliberadamente técnico ou natural. Segui-a, cometi a loucura de fazer uma viagem curta sem atingir o destino final, fiquei-me pelo meio caminho, não descobri onde vive e onde se deita com receio que isso me diluísse a fantasia.

As casas falam muito, contam quase tudo, são caixas fortes e secretas mas, abertas à realidade sobre os moradores. Receei que olhasse para trás, que me visse, que me mandasse entrar, que ao me apontar a melhor cadeira, sorrisse e me mandasse sentar, que prepararia algo para me servir enquanto teria eu o tempo para decifrar o número de camadas de tinta que as paredes tinham, o tempo para ler nas estantes os títulos dos livros que leu, separadamente organizados, dos que ainda estariam por ler, analisar o plano de tarefas semanais pregado na porta do frigorífico e recordar para sempre onde, por hábito, espalhava os chinelos-de-quarto.

Medo foi o que senti quando decidi abandonar persegui-la. Medo de a conhecer melhor e de lhe descobrir as mais estúpidas razões que lhe pudessem ser atribuídas como defeitos. Cometi a loucura de fazer uma viagem pequena, a loucura de me ficar pelo meio caminho e de me ter por desistido, de ter sido brutalmente fraco e satisfeito pela candura de um imaginário.

Tal como tê-la, egoistamente à minha maneira, cometo sempre a mesma loucura de querer só isto, de me ficar só pelo incompleto.


ao lado