24/06/09


Uns noventa anos no lombo e os dentes do marido, feitos em brincos, nas orelhas.
Suzete, era a mulher que viu Salazar a fugir entre os arcos da biblioteca principal quando rebenta o golpe de estado.
- Já engoli muito lixo menino - disse-me ela esfregando a barriga que lhe içava o avental.
Sou do tempo em que os olhos eram das lágrimas enquanto comíamos do mesmo prato.  Sabe lá o menino o que isso é. Já ouviu falar de amor e incerteza?

Trazia no pescoço um terço, preso nele a imagem do sagrado coração de Jesus e um S. António. Nos dedos, vinte e cinco anéis, distribuídos ainda às escuras por alturas da tímida madrugada.
Suzete é uma mulher saciada de histórias e adereços.  
O marido tinha sido um dos guardas de Salazar que ficara sem os dentes durante a fuga de abril . 
DIz-se que embatera numa das colunas duras e rijas  que ainda hoje, ali, assistem a tudo. 
Pelas suas marcas, aquelas barras, contam ainda hoje histórias de fugitivos, desaparecidos e desdentados.
Os dentes foram encontrados e hoje eram os brincos de Suzete.
- Ó menino; soubesse eu do meu marido para lhos tornar a pôr. 

O marido de Suzete tinha desaparecido pelo meio da multidão disfarçando com os seu casaco as feições de Salazar.
- Sabe que ouço por aí dizer que o presidente ainda é vivo e quem enterraram foi um dos seus colegas de poker? E olhe que o meu marido não sabia jogar poker. Abençoada burrice dele nos naipes para me fazer mulher com esperança.
Já me cambaleio, como vê menino, mas ainda o espero.
Cambaleio não por estes anos me terem secado as lágrimas, mas por ser uma mulher ausente do amor do qual só o sei desdentado.

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