Porque nos banhos dos corpos nús não se deve olhar abusivamente para os lados, não o fiz, dei-me só ao sentido dos mimos da espuma que me escorria pelo corpo e da água morna que me amolecia pés.
Cometi a inocente loucura de deixar cair uma moeda bem perto de si e da toalha ensopada com a última água que passou por ela.
Baixou-se.
Em silêncio ao passar-me a moeda que tivera rolado até aos seus dedos, vimo-nos.
Tirou a toalha, unto-se com creme "peles mistas", vestiu-se e saiu apressada. Fiz o mesmo, mas com uma calma que não era minha. Como não uso cremes não gastei o mesmo tempo que aquela mulher, fazia-me em espera. Sem pressas vesti-me, não me podia adiantar.
Saiu. Sai, segui-a a uma distância segura. Queria saber mais sobre aquela razão aturdida que eu sentia e sobre si, onde aprendeu a colocar a voz, o que significaria o anel no dedo e se o corrupio que trazia no cabelo era deliberadamente técnico ou natural. Segui-a, cometi a loucura de fazer uma viagem curta sem atingir o destino final, fiquei-me pelo meio caminho, não descobri onde vive e onde se deita com receio que isso me diluísse a fantasia.
As casas falam muito, contam quase tudo, são caixas fortes e secretas mas, abertas à realidade sobre os moradores. Receei que olhasse para trás, que me visse, que me mandasse entrar, que ao me apontar a melhor cadeira, sorrisse e me mandasse sentar, que prepararia algo para me servir enquanto teria eu o tempo para decifrar o número de camadas de tinta que as paredes tinham, o tempo para ler nas estantes os títulos dos livros que leu, separadamente organizados, dos que ainda estariam por ler, analisar o plano de tarefas semanais pregado na porta do frigorífico e recordar para sempre onde, por hábito, espalhava os chinelos-de-quarto.
Medo foi o que senti quando decidi abandonar persegui-la. Medo de a conhecer melhor e de lhe descobrir as mais estúpidas razões que lhe pudessem ser atribuídas como defeitos. Cometi a loucura de fazer uma viagem pequena, a loucura de me ficar pelo meio caminho e de me ter por desistido, de ter sido brutalmente fraco e satisfeito pela candura de um imaginário.
Tal como tê-la, egoistamente à minha maneira, cometo sempre a mesma loucura de querer só isto, de me ficar só pelo incompleto.
4 comentários:
...fica-se irremediavelmente só no incompleto...
e cada vez mais sós, dependendo de quão maiores se tornarem os medos... e eles vão tomando os seus lugares, impondo-se, majestosamente.
[há um denominador comum na escrita, que se sente amplo. agrada-me]
feliz 2010 :) *
:) então, qual é o denominador? :)
belíssimo texto.
Delicioso. O Patife gosta disto.
Enviar um comentário